A falta de cuidados na prevenção à Covid-19 por parte de empresas têm motivado pedidos de rescisão indireta - quando uma demissão por parte do funcionário é revertida para os moldes de dispensa sem justa causa. A recusa em aceitar atestados médicos, a não permissão do isolamento recomendado pelos órgãos sanitários depois de uma infecção e o fato de deixar de distribuir EPIs são motivos para a concessão da rescisão indireta, de acordo com decisões levantadas pelo JOTA.
Na dispensa sem justa causa - diferentemente de outras modalidades como a pedido do trabalhador, por justa causa ou por força maior -, é função do empregador pagar 40% de multa em relação ao FGTS acumulado no período de emprego, além de arcar com outros direitos, como aviso prévio, férias e 13º proporcionais. Na rescisão indireta, o ex-funcionário mostra que a saída não foi opcional, mas ocorreu por quebras contratuais.
A Justiça trabalhista lida, desde o início da pandemia, com disputas relacionadas à Covid-19, porém as primeiras decisões ainda não são suficientes para as principais questões estarem pacificadas. Ainda em abril de 2020, o Supremo Tribunal Federal (STF) entendeu que é possível caracterizar a Covid-19 como doença ocupacional sem que os trabalhadores tenham que comprovar que a doença tenha ligação com o trabalho.
Ignorar atestados de infecção por Covid-19 ou determinar o retorno antes do período recomendado de isolamento são passíveis de revisão da dispensa - e até podem caracterizar “conduta criminosa” no entendimento de magistrados.
Ex-funcionários do Burger King afirmam que foram obrigados a trabalhar mesmo após apresentação de atestado médico de infeção por coronavírus. Em um dos casos, enquanto ainda trabalhava para a rede de restaurantes, uma funcionária requereu a rescisão indireta na Justiça ainda em 2020.
Atestado médico comprovou que ela estava infectada com a Covid-19, por isso deveria se manter afastada por dez dias. Porém, no quarto dia após o início do afastamento, voltou ao trabalho presencial. Ainda, conversa de WhatsApp entre ela e o superior indicou que, após o envio do documento, ele fez com que ela fosse pessoalmente até o local de trabalho fazer a entrega.
Em decisão do fim de janeiro, o juiz Sebastião Abreu de Almeida, da 66ª Vara do Trabalho de São Paulo, considerou a conduta grave, ao colocar em risco a vida de funcionários e clientes, além de ferir a dignidade da empregada. Pelos indícios de conduta criminosa, enviou ofício sobre o caso ao Ministério Público de São Paulo.
Além da rescisão indireta, ele concedeu indenização de R$ 15 mil por dano moral a ela, no entendimento de que ela serviria “não só para dar ao empregado um lenitivo ao seu sofrimento, como também, para desestimular a reiteração de conduta negligente da reclamada, expondo seus trabalhadores e clientes a risco de contaminação por coronavírus”.
Na mesma semana, a juíza Sandra Regina Esposito de Castro, da 6ª Vara do Trabalho de São Paulo, condenou o Burger King a pagar os custos de rescisão indireta a outro funcionário também pela recusa de atestados médicos e prazo de até 24 horas para a entrega do comprovante médico.
Para obter a rescisão indireta, é necessário haver provas robustas sobre o descumprimento das regras - não bastam reclamações dos empregados. “O ônus da prova é de quem alega. Assim como a justa causa aplicada ao empregado, a rescisão indireta ocorre de forma extremamente excepcional”, explica Rodrigo Marques, coordenador do núcleo trabalhista do escritório Nelson Wilians Advogados, em São Paulo.
“Logo, se eventualmente a empresa for demandada em juízo poderá provar que sempre cumpriu com todas as normas de saúde, medicina e segurança do trabalho”, completa.
A empresa de prestação de serviços terceirizados Top Service foi acusada por um ex-empregado de não receber atestados médicos por Covid-19; ficou demonstrado ainda que ele voltou a trabalhar antes do tempo estabelecido. Isto foi suficiente para caracterizar a rescisão indireta, mas um pedido de indenização por assédio moral por esse motivo foi negado.
“Tal conduta da ré, além de socialmente irresponsável e de atentar contra a saúde pública, fere frontalmente as disposições legais que regulam a matéria”, disse a juíza Patrícia Almeida Ramos, da 69ª Vara do Trabalho de São Paulo, em decisão do início de janeiro.
Um motorista de uma linha urbana de ônibus em Carapicuíba, na Grande São Paulo, pediu o reconhecimento da rescisão indireta do contrato de trabalho por ter sido exposto a riscos, já que trabalhava em meio a aglomerações e jamais recebeu equipamentos de proteção da Viação Osasco.
“Cabe ao empregador zelar pela manutenção de um meio ambiente laboral sadio e seguro, com observância das normas de medicina do trabalho, fornecendo aos empregados todos os equipamentos de proteção necessários”, afirmou o juíza Júlia Garcia Baptistuta, da 1ª Vara do Trabalho de Carapicuíba (TRT2), ao conceder a rescisão indireta em outubro passado.
As provas apresentadas pela empresa sobre a disponibilização de álcool em gel não convenceram a juíza de que o material foi, de fato, entregue a todos os funcionários ao longo de toda a pandemia. Não houve qualquer indício de que máscaras foram oferecidas, embora a Lei 14.019/2020 obrigue os estabelecimentos a fornecer o item na pandemia.
De modo geral, as decisões de revisão da demissão levam em conta o artigo 483 da CLT, que estabelece que o trabalhador pode considerar a rescisão se, dentre outros motivos, “correr perigo manifesto de mal considerável” ou o empregador não cumprir as obrigações do contrato.
No caso da Covid-19, não há balizas específicas sobre quais seriam condições suficientemente graves para garantir a rescisão indireta, se o acúmulo de um ou mais fatores de risco. “Como não há normas regulamentares específicas a serem observadas, o descumprimento deve ser grave o suficiente para constatação de um ambiente de trabalho inequivocamente inseguro”, aponta o advogado trabalhista Luís Augusto Egydio Canedo, sócio do escritório Greco, Canedo e Costa Sociedade de Advogados, em São Paulo.
Um vigilante que trabalhava como terceirizado no Hospital Tide Setúbal, da rede municipal e referência para Covid-19, afirmou que trabalharia sem EPIs se não comprasse do próprio bolso e fazia rondas nas alas de coronavírus, além de auxiliar pacientes a se locomover.
Diante da situação, que não teve contraprovas apresentadas pela empresa Centurion Segurança e Vigilância, ele teria contraído a infecção e, no retorno ao trabalho, ao pedir por equipamentos de proteção, teria sido ameaçado de demissão por justa causa.
A juíza Andrea Cunha dos Santos Gonçalves, da 14ª Vara do Trabalho de São Paulo, entendeu que isso seria suficiente para a rescisão indireta. Nesse caso, após perícia, também foi concedido adicional de insalubridade ao funcionário - que, por não ser profissional de saúde, não tinha o benefício em contrato.
Os processos, conforme aparecem no texto, têm os números: 1001262-84.2020.5.02.0066; 1000921-87.2020.5.02.0606; 1000568-72.2021.5.02.0069; 1000705-53.2021.5.02.0231; 1001876-94.2020.5.02.0614.
O Burger King enviou a seguinte manifestação:
“O Burger King esclarece que desde o início da pandemia preza pela saúde e segurança de todos os seus colaboradores, realizando testagem e seguindo todos os protocolos de prevenção, além de promover uma campanha de conscientização sobre a vacinação. A companhia ressalta que possui um fluxo diligente sobre a gestão de atestados, que é divulgado para todos os colaboradores, e que, após a apresentação do documento acerca do afastamento das atividades, principalmente sobre a Covid-19, a determinação é cumprida imediatamente. A marca reforça que os colaboradores retornam ao trabalho somente após a testagem negativa. Sobre os processos citados, o Burger King destaca que tomou ciência da decisão em primeira instância e está recorrendo.”
A reportagem não conseguiu contato ou retorno das demais empresas citadas.
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